A necessidade do laudo pericial de incêndio na perícia de incêndio

Da contextualização

Em muitos casos de incêndios residenciais é observado a ausência do laudo pericial de incêndio, documento de competência do Corpo de Bombeiros do Estado. Muitas pessoas leigas acabam por não solicitar da corporação o laudo, achando que o Boletim do Ocorrências (BO) é o bastante, então começam os problemas.

Imagine se a seguradora responsável por sua residência simplesmente decidir não reembolsar o sinistro, como você agirá? Bom você com certeza impetrará um processo judicial contra a seguradora, estando certo que o Boletim de Ocorrência resolve todos os problemas. Porém, o Juiz determinará uma Perícia Judicial e o Perito simplesmente não aceita o BO porque consta somente a “causa presumida“, isto é, não foi determinada a “causa real“. E agora?

Do boletim de ocorrência

Imagem obtida do boletim de ocorrência de fato real

O boletim de ocorrência do corpo de bombeiros relata “curto-circuito” como “causa presumida”, porém não existe um laudo pericial de incêndio para estabelecer a causa real. E agora?

A própria presunção naquele campo definido como “causa presumida” afasta a certeza técnico-científica esperada, ademais o histórico de ocorrência não especifica em qual parte do imóvel, ou do circuito elétrico, ou dispositivo derivou a ignição, apenas disserta “A CAUSA PRINCIPAL SERIA UM CURTO CIRCUITO.”. Apesar da confiança embarcada na fé pública da corporação, a ciência não se alimenta apenas de confiança, mas de vestígios, evidências, indícios, nexo causal, cadeia de custódia, fundamentação, métodos, entre outros artifícios técnico-científicos reconhecidos e comumente utilizados pelos seus pares.

Da ausência do laudo pericial de incêndio

Para ser devidamente aceito perante a comunidade pericial, a Corporação deveria ter apresentado algum relatório, parecer ou laudo pericial determinando os detalhes, causas e motivos do incêndio.

Como conceito, o laudo pericial é a peça documental oriunda da investigação e perícia em incêndio, com o objetivo de identificar a origem e a causa do incêndio, e ainda, verificar fatores e circunstâncias necessárias à elucidação dos fatos, por meio do registro das técnicas utilizadas para a determinação da origem e causa do incêndio, bem como a extensão e valoração dos danos, quando possível.

(Manual de perícia em incêndios e explosões, Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal)

O laudo dever-se-á ser dividido em duas partes principais, a parte que é obrigatória a todos os laudos periciais, que envolve a coleta, exame e análise de dados e eventos com o intuito de se estabelecer, com o devido nexo de causalidade, a origem e a causa do incêndio e, os descritivos e documentos complementares, aqueles que trarão mais peso e explicações adicionais aos fatos.

O laudo é composto de partes obrigatórias para determinação da origem e causa do incêndio, e de partes complementares as quais esclarecem as circunstâncias em que o incêndio ocorreu e corroboram com as análises feitas.

(Manual de perícia em incêndios e explosões, Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal)

O laudo pericial de incêndio deveria ser composto por descritivo detalhado da cena pericial, apresentando fotografias, croquis, filmagens, entre outros itens importantes para perpetuar os dados coletados para futuras conferências, como uma segunda perícia por exemplo.

Considerando que o laudo pericial precisa registrar o processo para determinação da origem, da causa e os fatos e circunstâncias que proporcionaram o surgimento, o desenvolvimento e a extinção do incêndio, deve ser composto por:

Parte escrita;

Fotos;

Croquis;

Filmagens;

Eventuais anexos, desde que relevantes para o esclarecimento do sinistro.

(Manual de perícia em incêndios e explosões, Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal)

Conforme o Manual de perícia em incêndios e explosões do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, pg. 36, são obrigatórios nos laudos periciais de incêndios, os seguintes itens:

a) Dados gerais;

b) Descrição geral do local incendiado;

c) Exames realizados;

d) Determinação da origem do incêndio;

e) Determinação da Causa do Incêndio;

f) Propagação do incêndio;

g) Conclusão;

h) Causa;

i) Fotos;

j) Descrição do objeto causador;

k) Fenômenos do incêndio;

l) Carga de incêndio;

m) Análises e exames complementares;

n) Prevenção e extinção do incêndio;

o) Produtos perigosos;

p) Coleta de depoimentos;

q) Quantidade de pessoas envolvidas;

r) Informações relativas às vítimas;

s) Valoração de danos;

t) Outras considerações;

u) Anexos.

(Manual de perícia em incêndios e explosões, Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal)

O Manual de perícia em incêndios e explosões do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, é apresentado aqui como um paradigma operacional, cumprindo o exigido pelo Art. 473, Inc. III do CPC/15.

Da ausência da cadeia de custódia

Para ser devidamente aceito perante a comunidade pericial, o relatório, parecer ou laudo pericial da corporação deveria apresentar no mínimo um ou mais vestígios que apontassem a causa presumida.

Soares (2021) cita que “Arnes (2018) afirma que o cientista forense é responsável pelo estabelecimento de fatos que respondam às seguintes questões: O que aconteceu? Como aconteceu? Quem esteve envolvido? Quando aconteceu?”.

(SOARES, 2021)

Entenda mais sobre a diferença entre vestígio, evidência e indício no artigo a seguir:

Se houve curto-circuito (O que aconteceu), qual foi o dispositivo elétrico que o causou (Como aconteceu)? Seria um ferro de passar roupas, encontrado com o botão posicionado na posição ligado? Seria uma emenda mau confeccionada em condutores sobre o forro de PVC, caracterizado pela ausência de fita isolante, expondo seu metal para o contato acidental com outro condutor energizado?

Vestígios: são os objetos ou materiais encontrados no local do crime e relevantes para a investigação. Tais objetos devem ser considerados como importantes em um primeiro momento e podem auxiliar no esclarecimento dos fatos que estão sendo investigados. Após a coleta, são submetidos aos processos de análise, triagem e apuração analítica. A partir disso, é possível identificar se eles realmente possuem algum vínculo com o objetivo da perícia ou com o crime cometido.

(SOARES, 2021)

Identificado o vestígio a segunda etapa seria evoluí-lo para o status de evidência, utilizando-se dos métodos científicos empregados nas fases de exame e análises periciais, para estabelecer o nexo de causalidade, conectando assim o vestígio fato ocorrido.

Evidências: são derivadas dos vestígios, isto é, são elementos materiais. Para os processos, são chamadas de “prova material”. Isso significa que uma evidência é o vestígio após passar por avaliação, análise ou exame, restando comprovado que possui vínculo direto com o evento que está sendo investigado.

(SOARES, 2021)

A terceira e última etapa consiste em evoluir a evidência ao status de indício. Conforme o CPP (Código de Processo Penal Brasileiro), em seu artigo 239, indício é a evidência provada, isto é, aquela suspeita eivada de vestígios, que foram materializados por vários vestígios ativos e que se tornaram evidências, após uma minuciosa e fundamentada análise técnico-científica, resultou na devida comprovação da tese. Por fim o que era suspeita tornou-se prova cabal, concreta, definitiva do fato investigado, portanto tornou-se um indício.

Indício: é definido como a circunstância conhecida, provada e relacionada ao fato investigado, sendo possível concorrência ou combinação com outros elementos, situações e acontecimentos que auxiliem na conclusão indutiva de outros indícios circunstanciais. Toda evidência é um indício, mas nem todo indício é uma evidência, pois ele permite ter elementos de natureza subjetiva e todos os demais meios de prova. Os indícios de ordem objetiva, que são os que têm como origem uma evidência, sempre decorrem de um procedimento pericial, ou seja, são circunstâncias 10 conhecidas e provadas e, judicialmente, podem receber o nome de prova indiciária.

(SOARES, 2021)

Por fim a resposta da segunda pergunta “Como aconteceu?” não foi respondida. Assim, da ausência de um laudo pericial detalhado do Corpo de Bombeiros e, impossibilitado de vistoriar a cena pericial, torna-se impossível coletar, examinar, analisar e determinar com certeza técnico-científica, a verdadeira causa/motivo do incêndio.

Da obrigação normativa

A tradição do imóvel ocorreu no ano de 2015, portanto as instalações elétricas encontrava-se adstrita às obrigações da norma NBR5410 de 2004 Versão Corrigida 2008.

Do curto-circuito

Do incêndio e da hipótese de curto-circuito, importante frisar que, existe possibilidade de ter ocorrido tanto nas instalações estruturais, isto é, em tomadas, disjuntores, fiação, entre outros itens participantes da estrutura fornecida pela construtora, podendo adesivar responsabilidade à CONSTRUTORA, como em equipamento à rede elétrica conectados pelo usuário da UC (Unidade Consumidora), podendo adesivar responsabilidade ao MORADOR. Portanto vem redundar que, da ausência de um laudo pericial detalhado do Corpo de Bombeiros e, impossibilitado de vistoriar a cena pericial, torna-se impossível coletar, examinar, analisar e determinar com certeza técnico-científica, a verdadeira causa/motivo do incêndio.

Análise final

Diante de toda construção narrativa preteritamente apresentada no presente laudo, fundamentada e referenciada, vem o Perito delimitar sua análise final sobre a lide.

Iniciada a perícia o Perito releu todo processo, buscando por todos os pontos chaves interessantes para o deslinde do caso. Sentiu necessidade de solicitar os originais ou cópias dos originais dos pareceres técnicos apresentados pelas PARTES, contendo melhor qualidade visual, que foram atendidos pelos presentes no grupo. Seguindo na coleta, exame e análise de dados, considerou parcialmente os documentos, explicando cada ponto aproveitado e/ou descartado, bem como o motivo para tal.

Entendeu este Perito, em resumo, que o tema principal da lide envolveu o incêndio ocorrido no OBJETO PERICIAL, tendo a REQUERENTE atrelado responsabilidade à REQUERIDA, pelo fato do boletim de ocorrência do Corpo de Bombeiros figurar a afirmativa da causa presumida ser curto-circuito e, das inúmeras inconformidades encontradas na estrutura elétrica fornecida, devidamente narradas no parecer técnico apresentado pela REQUERENTE. O fato é que ao analisar toda documentação, constatou este Perito que, apesar da Corporação ter apresentado “causa presumida” e o Engenheiro apresentado inúmeras inconformidades normativas, a REQUERENTE não apresentou o laudo de incêndio, documento obrigatório para estabelecer o nexo de causalidade entre o objeto e o sinistro, o que impossibilitou de se determinar, com certeza técnico-científica, a verdadeira causa. Portanto, com base na impossibilidade da determinação da verdadeira causa, não há que se discutir ou apontar responsabilidades deste caso em específico.

Fontes:

ARNES, A. Digital Forensics. New Jersey: Wiley, 2018.

Manual de perícia em incêndios e explosões: conhecimentos gerais / Diretoria de Investigação de Incêndio – Brasília: Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, 2019. 310 p. Disponível em: <https://www.cbm.df.gov.br/downloads/edocman/file_5e21f5896b722_I-Conhecimentos%20Gerais%20-%20Manual%20de%20Percia%20em%20Incndios%20e%20Exploses.pdf>. Acesso em: 12 fev 2022.

NORMA OPERACIONAL n. 16 de 11 de dezembro de 2015. Serviço de Investigação e Perícia de Incêndio. ESTADO DE GOIÁS SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA CORPO DE BOMBEIROS MILITAR. Disponível em: <https://www.bombeiros.go.gov.br/wp-content/uploads/2017/05/NO-16-Per%C3%Adcia.pdf>. Acesso em: 12 fev 2022.

SOARES, Juliane Adélia. PROCEDIMENTOS, TÉCNICAS E FERRAMENTAS FORENSES. 1º ed. São Paulo: Platos Soluções Educacionais S. A., 2021. 44 p.